Nascer duas vezes

Nascer duas vezes, a primeira exposição individual de João Arthur Moroni, nos convida a uma façanha: renascer. A possibilidade de contarmos em primeira pessoa nossa história coloca questões: quantos ressignificados são constantemente feitos nesse arco temporal que nos traz ao aqui e agora? Quais os acontecimentos e sentimentos que reunimos em nossa cartografia? Tais indagações são incorporadas na construção da linguagem poética de Moroni, que abarca essa condição sempre ativada da diferença; seu trabalho artístico está intensamente ligado com o seu processo de adoção e implica na busca por uma identidade pessoal que se converte em anseio por constituir um "eu".

Entre desenhos, pinturas e fotografias, o artista desenvolve um processo expressivo para criar uma subjetividade que esteja à sua altura, e assim reconstruir o mundo. As obras nos oferecem uma visão sobre a germinação e evolução dos vários assuntos e técnicas que ele explora, a partir de uma perspectiva íntima, entrelaçando seus esforços artísticos com sua vida pessoal, influências e os momentos que viveu.

Com uma predileção por riscar palavras ou frases para ativá-las em vez de obscurecê-las, a série Ode à indústria farmacêutica reúne desenhos cujo suporte são caixas e bulas de medicamentos consumidos por Moroni. A terminologia médica é obliterada, a fim de revelar como esses gestos experimentais, transgressivos, regressivos e libertadores são testemunhas de uma vida. Por meio de um formato que poderia ser visto como meramente frio, revela-se um alto impacto emocional e radicalmente subjetivo; um recipiente através do qual o processo da vida deve passar - menos como um remédio, e mais como um antídoto.

A cor energética é reforçada na série Como se lê francês? que apresenta facetas (vistas? Nunca vistas?) como quem deixa cicatrizes nas superfícies da tela. Rostos humanos afundados, semelhantes a crânios, com olhos bulbosos sem pálpebras que olham além do observador e para o infinito - como um eco -, nariz assoreados e dentes visíveis aparecem com destaque no trabalho. Nessa atmosfera densa e difusa, um encontro com a natureza da nossa existência: as pinturas nos colocam diante da dicotomia interno/externo.

Na série E se eu não existisse nas minhas próprias fotografias?, o vazio oferece um novo tipo de vitalidade. Todas as fotografias escassamente povoadas com pessoas ou totalmente desprovidas delas, buscam transmitir uma sensação inconfundível de solidão, estranhamento, quietude e mistério. Ao retirar a si mesmo de cada imagem o artista joga com a possibilidade de mais, no negativo, na ausência: o que se abre na imagem? A ausência é generativa.

Se a narrativa autobiográfica se dá em gestos e figuras que funcionam como signos indicadores para construir um sentido compartilhado, a produção de João Moroni permanece em fluxo nos tocando nas entranhas, nos arremessando em renascimento e regeneração, buscando atingir o que em nós é genuíno e vivo.

- Texto crítico da exposição Nascer duas vezes, escrito por Anelise Valls.

Resenha do livro O último romance na sua last dance (Ed. Patuá, 2025), de João Arthur Moroni

O livro de artista O último romance na sua last dance (Editora Patuá, 2025), do artista João Arthur Moroni, é resultado do seu Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Artes Visuais, realizado no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cuja pesquisa tive o prazer de orientar. Cabe destacar que é muito raro um artista que, concomitantemente ao semestre de finalização do curso, tenha um livro publicado, após submetê-lo ao Edital de uma editora. Portanto, muito significativo da qualidade da obra.

A categoria chamada de livro de artista vem sendo muito explorada na contemporaneidade nas suas mais diferentes formas de constituição física. A obra que propõe Moroni, embora se apresente no formato de publicação, como seria um livro tradicional, não apresenta literalidade entre as imagens e os textos. Organizado em quatro capítulos, A dureza dos romances atuais e o sexo casual, Os enfant terribles, O physique du rôle, As last dances, estes se desdobram em vários subcapítulos que se caracterizam por um viés de caráter autobiográfico, dedicado às memórias desde a história da sua adoção até o momento atual de vida.

As suas narrativas identitárias são apresentadas por meio de fotografias retiradas de seu álbum de família, de seu RG, de reproduções de pinturas, de desenhos que produziu durante a sua formação e de imagens apropriadas do espaço urbano. Ao ler os títulos dos subcapítulos, de imediato, o autor aguça a nossa imaginação ao nos fazer pensar em imagens quando escreve, por exemplo, Sobre pintura I e II, Ode ao erotismo e aos sucos de laranja, Para os palhaços, Banho de sol, Para as paisagens neon.

Esta obra reúne Artes Visuais e Literatura, com imagens que vão se intercalando a uma escrita poética, mas sem nenhum caráter ilustrativo. Não há um sentido cronológico de tempo nas narrativas dos acontecimentos. São reflexões sobre silêncios, traumas, ausências, presenças, vulnerabilidades, romances, (des)encontros, desejos, sexo, escolhas, rememorações de infância, viagens, entre outros pensamentos. Os textos referenciam a linguagem literária, lembrando do poeta surrealista Robert Desnos, como se evidencia em À palavra, o pertencer, O rapaz que sabia mandarim ou, ainda, recolhendo frases do espaço urbano, como “Um pescador de ilusões”. Tanto na escrita como nas imagens, além do artista traçar um autorretrato de sua identidade física, social, geográfica e cultural, com elementos que formam um atestado de presença no mundo, ele, também, nomeia os seus afetos em retratos de Maria Luiza e de Renato. 

João mostra uma escrita elegante, sensível, afável e muito poética, criando passagens que instigam a continuidade da leitura e a curiosidade, nos fazendo mergulhar nas suas memórias autobiográficas, algumas das quais bem poderiam ser as nossas próprias lembranças. Há, no texto, expressões preciosas – por vezes, surreais –, que perturbam lógica da realidade, como “na primavera, me banhei até os dedos caírem das mãos (...)”, “sangue brilha no teu corpo transparente”, “(...) uma criança nascida do vento”, “(...) me entendo como mancha”, “palavras derramadas”, “de quem dia oceânico num ano de gota” e “colecionador de olhares cruzados”.

Sendo a memória o tema condutor desta obra, é emblemático que a capa do livro apresente fragmentos de fotografias justapostos, pois a memória, como se sabe, constitui-se por frações de acontecimentos do passado e do presente.

Com este livro de artista, João Arthur Moroni confirma o que ele mesmo diz: “Sou, desde pequeno, obcecado por palavras”. Desta forma, ele revisita o passado e o presente de sua vida privada e de sua trajetória profissional, desenvolvendo um pensamento analítico sobre situações cotidianas que vivenciou como forma de conhecer a si mesmo para entender o seu pertencimento social no mundo.

- Resenha escrita pela Dra. Niura Aparecida Legramante Ribeiro, Professora Associada do Instituto de Artes/UFRGS, Julho/2025.

 


Resenha do livro O último romance na sua last dance (Ed. Patuá, 2025), de João Arthur Moroni

O livro O último romance na sua last dance (Editora Patuá, 2025), tem presença, assim como João a tem. Presença no sentido de comparecer e ouvir cada segundo que a vida oferece, os pequenos detalhes do cotidiano. Uma trajetória de vida em desdobramento.

João escreve de maneira fragmentária e quase aforística, aqui somos apresentados à relação visceral com a linguagem e a visualidade, onde a palavra e a imagem não se opõem, mas se entrelaçam. Cada trecho possui autonomia discursiva, funcionando como uma unidade de sentido relativamente independente dentro do texto. Essa característica confere a cada parte uma “vida própria”, no sentido em que ela é capaz de comunicar ideias, desejos ou argumentos sem depender exclusivamente da totalidade da obra, possibilitando dessa maneira a ampliação do seu potencial interpretativo.

As imagens que João usa contam histórias, memórias lembradas, imagens de contextos que emergem de uma incógnita, instigam o leitor a reflexionar sobre sua origem, seu sentido, ao mesmo passo que também complementam sua narrativa dentro do livro.

O texto percorre um arco emocional gradual, iniciando de forma incisiva, quase confrontadora sobre os temas debatidos em questão, e que ao longo deste percurso, seu tom vai mitigando o leitor. De forma branda e suave, João discorre sobre os laços familiares, a dureza das paixões atuais, o seu “eu” criança que rememora sob versos a infância que nunca deixou de existir no João jovem adulto.

“Sempre poeta quem ama no precipício” resume a entrega emocional e poética que atravessa toda a obra. Percebemos que para Moroni, viver e escrever são atos de coragem e vulnerabilidade — uma recusa ao medo, um salto no vazio, como quando ensinado, ainda muito pequeno por seus pais, a “pintar fora das linhas”, a deixar-se cair, machucar, chorar. As paixões que amaciam o coração, as decepções que o forjam; não é o medo da vida, é a ânsia de vive-la. É sobre estas pessoas, - difíceis, desconhecidas, amigas - que João escreve, é com elas que adentramos seu mundo particular, suas sensações, suas histórias. O infraordinário como meio de entender os ritmos que a vida nos oferece.

Quanto mais eu lia, mais vontade eu tinha de continua-lo. A sensação que tive foi de acalento pela memória lembrada. Em O último romance na sua last dance, João nos apresenta seu diário de recordações, assim como suas várias facetas em diferentes ocasiões. Sinto a grandeza de suas palavras, assim como sinto a textura da tinta em suas pinturas — viscerais. A doce e ácida sensação de fruta mordida.

- Resenha escrita pela artista visual Marília Tedesco da Rosa.